Tratamento da hemofilia: rumo a zero hemorragias espontâneas
A hemofilia é uma doença hemorrágica hereditária que se deve a diminuição ou ausência do fator VIII (hemofilia A) ou de fator IX (hemofilia B) da coagulação. Os fatores da coagulação intervêm no sentido de permitir uma coagulação adequada, ou seja, permitem parar uma hemorragia após um traumatismo ou uma intervenção cirúrgica. Na hemofilia, o “tampão” plaquetário formado não é estabilizado pela rede de fibrina, pelo que os doentes sangram mais tempo que o normal, mesmo após traumatismos mínimos. As hemartroses (hemorragias articulares) principalmente, e as hemorragias musculares, são as hemorragias mais frequentes e mais características da hemofilia, representando cerca de 90% de todas as hemorragias na doença grave. A gravidade das manifestações hemorrágicas está de acordo com o nível do fator da coagulação, sendo que na hemofilia grave as hemorragias são espontâneas, na moderada a leve, as hemorragias surgem predominantemente após trauma ou cirurgia.O grande passo qualitativo no tratamento da hemofilia foi a disponibilidade de tratamento substitutivo, sendo que ainda atualmente, o tratamento da hemofilia baseia-se na infusão de concentrados de fatores VIII ou IX, quer para o tratamento do episódio agudo da hemorragia (tratamento on demand, ou a pedido), ou prevenir as hemorragias pela administração regular dos concentrados de fatores (tratamento profilático). A profilaxia tem como objetivo transformar uma hemofilia grave em não grave e consequentemente prevenir as hemorragias articulares e a lesão articular. Atualmente, a profilaxia é considerada o tratamento óptimo da hemofilia grave e defendido pela Federação Mundial de Hemofilia e pela Organização Mundial de Saúde.
A campanha “hemorragia zero” alerta para a necessidade de um tratamento profilático adequado de forma a prevenir as hemorragias espontâneas de forma eficaz (zero hemorragias espontâneas /ano), o que passa por ajustar a profilaxia às necessidades individuais de cada pessoa com hemofilia (profilaxia personalizada) e melhorar a adesão ao tratamento. A profilaxia personalizada deve considerar o padrão hemorrágico, a condição músculo-esquelética, a atividade física diária, os objetivos e desejos individuais assim como a farmacocinética de cada pessoa com hemofilia, com o objetivo de reduzir de forma eficaz o risco de episódios hemorrágicos espontâneos.
O tratamento no domicílio permite o acesso imediato ao fator VIII / IX, optimizando o tratamento on demand precoce e permitindo um mais eficaz controlo da hemorragia. Permite também a introdução de profilaxia, sobretudo em crianças que vivem longe dos centros de tratamento. O tratamento em casa pode ser iniciado em crianças pequenas e acessos venosos adequados, e com familiares treinados previamente para a administração do fator da coagulação; as crianças mais velhas ou adolescentes motivados podem ser incentivadas para o auto-tratamento. São fundamentais os programas de ensino sobre administração do tratamento pela pessoa com hemofilia ou familiares, assim como sobre a necessidade de cumprir e melhorar a adesão ao tratamento.
A possibilidade do tratamento em casa e a profilaxia, permitem a redução do absentismo escolar e laboral e melhoram substancialmente a qualidade de vida das pessoas com hemofilia e suas famílias, permitindo mesmo na doença grave uma vida praticamente normal.
Um outro aspeto importante no tratamento destes doentes foi a implementação de centros especializados no tratamento de hemofilia, orientados segundo o conceito de “cuidados compreensivos”, ou seja, de prestação de cuidados globais e articulados, por equipas multidisciplinares. Todos estes avanços permitem que muitas crianças nascidas com hemofilia possam usufruir de uma vida muito mais ativa e saudável, e que possam ter uma esperança de vida semelhante à esperança de vida da população masculina em geral.
Sara Morais – Coordenadora do Centro de Coagulopatias Congénitas do Hospital de Santo António
Fonte: Saúde Online